Exposição ao Risco nas Corridas em Trilhas: entre o chamado da natureza e os limites do corpo humano

Posted By Rafael Reinehr on abr 25, 2025 | 0 comments


Por Rafael Reinehr, Médico Endocrinologista, instrutor de Mindfulness, entusiasta do Ayurveda e criador do Projeto Centenarian Athlete


1. O fascínio pelas trilhas – e a pergunta inevitável

Se existe algo que une quem troca o asfalto pela terra é a atração por cenários selvagens, a busca de silêncio e aquela sensação primal de pertencimento à paisagem. Foi exatamente isso que me empurrou de provas de rua para provas de montanha – a ponto de, hoje, planejar desafios como La Misión Brasil, o Iceland Coast to Coast e sonhar com a Spartathlon grega. Mas cada passo em solo irregular cobra um preço: o aumento da exposição ao risco. Será que vale?


2. Risco como parte do jogo – lições de outros ultracorredores

Em setembro de 2024, a UltraRunning Magazine publicou o relato “Risks in Ultrarunning”, lembrando que animais selvagens, quedas, desidratação e desorientação fazem parte da equação. A autora coletou três histórias marcantes: um encontro noturno com um puma, um quase–acidente fatal por queda de pedra no Hardrock 100 e um episódio de síncope pós‑prova no chuveiro, ocasionado por desequilíbrio hidroeletrolítico Elas mostram que o risco não é teórico – é concreto, imprevisível e multifacetado.


3. Tipos de exposição: onde mora o perigo?

Cuidado com os troncos

3.1 Terreno e biomecânica

A principal causa de atendimentos em trilhas são traumas musculo-esqueléticos. Uma revisão com mais de 17 mil corredores constatou incidência de 2,2 a 65 lesões por 1 000 h de corrida, com predomínio de joelho, tornozelo e tendão de Aquiles. No meu caso, a condromalácia avançada nos joelhos, meu neuroma de Morton no pé esquerdo e uma inflamação na gordura de Hoffa exigem atenção redobrada em descidas técnicas.

3.2 Ambiente natural

• Fauna: encontros com felinos, aracnídeos, cobras e cães podem acontecer – o caso do puma a 20 m do grupo de corredores ilustra isso
• Flora: raízes ocultas, espinhos, plantas urticantes.
• Fenômenos geológicos: desprendimento de rochas em passagens alpinas, como o quase‑acidente no Hardrock 100 descrita na UltraRunning Magazine, buracos, fendas, deslizamentos, avalanches…

3.3 Clima e geografia

Altitudes elevadas, variações bruscas de temperatura, tempestades com raios ou neve inesperada ampliam o risco de hipotermia ou edema de altitude.

3.4 Fisiologia e saúde

Um estudo de 2025 apontou 14,3 lesões a cada 1 000 h em mulheres e associação com erros de treinamento. Já a síncope pós‑ultratrail mostra como vasodilatação induzida por banho quente, depleção de água e distúrbios eletrolíticos podem levar a perda de consciência e traumas secundários.

3.5 Logística e navegação

Distâncias longas entre pontos de apoio, sinal de celular intermitente e navegação falha aumentam o risco de se perder, atrasar socorro ou ficar sem água – exatamente o que ocorreu ao grupo que precisou correr 10 km extras no asfalto de madrugada.


4. Estatísticas que importam (e o que elas escondem)

  • Cuidado com a pedraPrevalência de lesões varia de 12 % a 100 % dependendo da definição usada.

  • Incidência de lesão em mulheres: 14,3⁄1 000 h, com 63 % no membro inferior – tendência que se repete em coortes mistas.

  • As lesões por excesso de uso (overuse superam traumas agudos; porém, quedas são responsáveis pelas fraturas mais graves.

Os números oscilam porque cada prova e cada corredor representam combinações únicas de volume, altitude, clima e experiência. Por isso, comparar estatísticas sem contexto é uma armadilha.


5. Fatores de risco modificáveis

  1. Progressão de carga – saltos abruptos de quilometragem ou desnível.

  2. Força e mobilidade – déficit de estabilidade de quadril e tornozelo aumenta torções.

  3. Nutrição e hidratação – déficit calórico, hiponatremia ou baixa vitamina D eleva risco de fratura de estresse em mulheres.

  4. Equipamento inadequado – falta de bastões, micro‑spikes ou manta térmica, como recomendou o corredor de Hardrock ao quase ser atingido pela rocha

  5. Sono e recuperação – subestimados, mas críticos para reparo tecidual.


6. Meus protocolos de autoproteção

No Projeto Centenarian Athlete, adoto cinco pilares:

 

Pilar Prática‑chave Objetivo
Treino polarizado Z2 + VO₂max Reduzir fadiga crônica
Força guiada Sessões 2 a 3× / semana Estabilizar joelhos e tornozelos
Mindfulness e Yoga 15 a 30 min diários Aumentar propriocepção e foco
Checklist pré‑prova Itens obrigatórios, revisados 48 h antes Evitar improvistos logísticos
Jornal de bordo Registro pós‑treino de dor, humor, sono Detectar padrões de risco

7. Medicina Endocrinológica aplicada ao trail running

Como endocrinologista, observo três áreas críticas:

  • Eixo hormonal e recuperação: cortisol cronicamente elevado compromete reparo muscular. Garantir que vitaminas, minerais, eletrólitos e hormônios estejam sempre ok.

  • Metabolismo ósseo: estradiol, testosterona e vitamina D influenciam densidade mineral; déficit somado a impacto excêntrico favorece fraturas por estresse.

  • Equilíbrio eletrolítico: hiponatremia exercional é silenciosa; monitoro sódio plasmático em ultramaratonistas que atendo e ensino protocolos de salinização conforme suor individual.


8. Estratégias de mitigação recomendadas

 

Kit de emergência - Ultratrail running

 

  1. Planejamento de rota e pontos de fuga – estude mapas topográficos e carregue trilha no relógio.

  2. Treino de habilidades técnicas – descidas em zigue‑zague, uso de bastões, travessia de rios.

  3. Kit mínimo de sobrevivência: manta térmica, apito, compressas estéreis, fonte dupla de luz. Veja também este Checklist.

  4. Periodização de força – concentre blocos de pliometria na pré‑temporada para poupar articulações na fase de volume.

  5. Educação sobre fauna local – protocolo de reação a felinos, serpentes e cães.

  6. Pós‑prova consciente – hidratar‑se antes do banho, sentar no chuveiro se exausto.

  7. Telemedicina preventiva – em consultas online, preparo atletas de altitude a monitorar saturação e sintomas de edema cerebral.


9. Cultura do risco positivo

Aceitar o risco não significa romantizá‑lo, mas compreendê‑lo. O momento em que minhas pernas tremeram na descida íngreme da Oktober Run mostrou que ousadia sem cuidado vira imprudência. Por outro lado, cada obstáculo vencido compõe o mosaico da auto‑superação – que é, afinal, a essência do movimento Cada Vez Melhor.


10. Conclusão – correr na corda bamba da aventura

Correr trilhas é equilibrar‑se entre deslumbre e perigo. Estatísticas confirmam que as probabilidades de lesão superam as do asfalto, mas a recompensa – física, mental e espiritual – também sobe na mesma proporção. Minha visão integrativa, que une endocrinologia, mindfulness e ciência do hábito, busca justamente ampliar o prazer e reduzir as dores desse caminho.

Se você pretende iniciar (ou aprofundar) sua jornada off‑road, troque o medo por conhecimento: estude, treine inteligente, fortaleça o corpo, ajuste a alma e respeite a natureza. A trilha continuará lá, tão bela quanto imprevisível, esperando o próximo passo – o seu.


Gostou do artigo? Acompanhe a evolução do Projeto Centenarian Athlete em pca.reinehr.org e mergulhe em conteúdos sobre variedades e saúde integral em reinehr.org. Nos vemos no alto da montanha – com segurança, presença e um sorriso no rosto.

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