Por Rafael Reinehr, Médico Endocrinologista, instrutor de Mindfulness, entusiasta do Ayurveda e criador do Projeto Centenarian Athlete
1. O fascínio pelas trilhas – e a pergunta inevitável
Se existe algo que une quem troca o asfalto pela terra é a atração por cenários selvagens, a busca de silêncio e aquela sensação primal de pertencimento à paisagem. Foi exatamente isso que me empurrou de provas de rua para provas de montanha – a ponto de, hoje, planejar desafios como La Misión Brasil, o Iceland Coast to Coast e sonhar com a Spartathlon grega. Mas cada passo em solo irregular cobra um preço: o aumento da exposição ao risco. Será que vale?
2. Risco como parte do jogo – lições de outros ultracorredores
Em setembro de 2024, a UltraRunning Magazine publicou o relato “Risks in Ultrarunning”, lembrando que animais selvagens, quedas, desidratação e desorientação fazem parte da equação. A autora coletou três histórias marcantes: um encontro noturno com um puma, um quase–acidente fatal por queda de pedra no Hardrock 100 e um episódio de síncope pós‑prova no chuveiro, ocasionado por desequilíbrio hidroeletrolítico Elas mostram que o risco não é teórico – é concreto, imprevisível e multifacetado.
3. Tipos de exposição: onde mora o perigo?
3.1 Terreno e biomecânica
A principal causa de atendimentos em trilhas são traumas musculo-esqueléticos. Uma revisão com mais de 17 mil corredores constatou incidência de 2,2 a 65 lesões por 1 000 h de corrida, com predomínio de joelho, tornozelo e tendão de Aquiles. No meu caso, a condromalácia avançada nos joelhos, meu neuroma de Morton no pé esquerdo e uma inflamação na gordura de Hoffa exigem atenção redobrada em descidas técnicas.
3.2 Ambiente natural
• Fauna: encontros com felinos, aracnídeos, cobras e cães podem acontecer – o caso do puma a 20 m do grupo de corredores ilustra isso
• Flora: raízes ocultas, espinhos, plantas urticantes.
• Fenômenos geológicos: desprendimento de rochas em passagens alpinas, como o quase‑acidente no Hardrock 100 descrita na UltraRunning Magazine, buracos, fendas, deslizamentos, avalanches…
3.3 Clima e geografia
Altitudes elevadas, variações bruscas de temperatura, tempestades com raios ou neve inesperada ampliam o risco de hipotermia ou edema de altitude.
3.4 Fisiologia e saúde
Um estudo de 2025 apontou 14,3 lesões a cada 1 000 h em mulheres e associação com erros de treinamento. Já a síncope pós‑ultratrail mostra como vasodilatação induzida por banho quente, depleção de água e distúrbios eletrolíticos podem levar a perda de consciência e traumas secundários.
3.5 Logística e navegação
Distâncias longas entre pontos de apoio, sinal de celular intermitente e navegação falha aumentam o risco de se perder, atrasar socorro ou ficar sem água – exatamente o que ocorreu ao grupo que precisou correr 10 km extras no asfalto de madrugada.
4. Estatísticas que importam (e o que elas escondem)
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Prevalência de lesões varia de 12 % a 100 % dependendo da definição usada.
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Incidência de lesão em mulheres: 14,3⁄1 000 h, com 63 % no membro inferior – tendência que se repete em coortes mistas.
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As lesões por excesso de uso (overuse superam traumas agudos; porém, quedas são responsáveis pelas fraturas mais graves.
Os números oscilam porque cada prova e cada corredor representam combinações únicas de volume, altitude, clima e experiência. Por isso, comparar estatísticas sem contexto é uma armadilha.
5. Fatores de risco modificáveis
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Progressão de carga – saltos abruptos de quilometragem ou desnível.
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Força e mobilidade – déficit de estabilidade de quadril e tornozelo aumenta torções.
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Nutrição e hidratação – déficit calórico, hiponatremia ou baixa vitamina D eleva risco de fratura de estresse em mulheres.
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Equipamento inadequado – falta de bastões, micro‑spikes ou manta térmica, como recomendou o corredor de Hardrock ao quase ser atingido pela rocha
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Sono e recuperação – subestimados, mas críticos para reparo tecidual.
6. Meus protocolos de autoproteção
No Projeto Centenarian Athlete, adoto cinco pilares:
Pilar | Prática‑chave | Objetivo |
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Treino polarizado | Z2 + VO₂max | Reduzir fadiga crônica |
Força guiada | Sessões 2 a 3× / semana | Estabilizar joelhos e tornozelos |
Mindfulness e Yoga | 15 a 30 min diários | Aumentar propriocepção e foco |
Checklist pré‑prova | Itens obrigatórios, revisados 48 h antes | Evitar improvistos logísticos |
Jornal de bordo | Registro pós‑treino de dor, humor, sono | Detectar padrões de risco |
7. Medicina Endocrinológica aplicada ao trail running
Como endocrinologista, observo três áreas críticas:
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Eixo hormonal e recuperação: cortisol cronicamente elevado compromete reparo muscular. Garantir que vitaminas, minerais, eletrólitos e hormônios estejam sempre ok.
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Metabolismo ósseo: estradiol, testosterona e vitamina D influenciam densidade mineral; déficit somado a impacto excêntrico favorece fraturas por estresse.
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Equilíbrio eletrolítico: hiponatremia exercional é silenciosa; monitoro sódio plasmático em ultramaratonistas que atendo e ensino protocolos de salinização conforme suor individual.
8. Estratégias de mitigação recomendadas
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Planejamento de rota e pontos de fuga – estude mapas topográficos e carregue trilha no relógio.
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Treino de habilidades técnicas – descidas em zigue‑zague, uso de bastões, travessia de rios.
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Kit mínimo de sobrevivência: manta térmica, apito, compressas estéreis, fonte dupla de luz. Veja também este Checklist.
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Periodização de força – concentre blocos de pliometria na pré‑temporada para poupar articulações na fase de volume.
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Educação sobre fauna local – protocolo de reação a felinos, serpentes e cães.
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Pós‑prova consciente – hidratar‑se antes do banho, sentar no chuveiro se exausto.
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Telemedicina preventiva – em consultas online, preparo atletas de altitude a monitorar saturação e sintomas de edema cerebral.
9. Cultura do risco positivo
Aceitar o risco não significa romantizá‑lo, mas compreendê‑lo. O momento em que minhas pernas tremeram na descida íngreme da Oktober Run mostrou que ousadia sem cuidado vira imprudência. Por outro lado, cada obstáculo vencido compõe o mosaico da auto‑superação – que é, afinal, a essência do movimento Cada Vez Melhor.
10. Conclusão – correr na corda bamba da aventura
Correr trilhas é equilibrar‑se entre deslumbre e perigo. Estatísticas confirmam que as probabilidades de lesão superam as do asfalto, mas a recompensa – física, mental e espiritual – também sobe na mesma proporção. Minha visão integrativa, que une endocrinologia, mindfulness e ciência do hábito, busca justamente ampliar o prazer e reduzir as dores desse caminho.
Se você pretende iniciar (ou aprofundar) sua jornada off‑road, troque o medo por conhecimento: estude, treine inteligente, fortaleça o corpo, ajuste a alma e respeite a natureza. A trilha continuará lá, tão bela quanto imprevisível, esperando o próximo passo – o seu.
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